A próxima grande crise financeira terá origem nos gestores de ativos e fundos de pensão, diz pesquisadora

A socióloga Kim Pernell examina a regulação por um ângulo incomum: o das influências culturais que determinam as decisões dos reguladores

“O capital está se concentrando em atores financeiros sem conexão com os depósitos e a rede de segurança”, diz Kim Pernell — Foto: Foto: Divulgação“O capital está se concentrando em atores financeiros sem conexão com os depósitos e a rede de segurança”, diz Kim Pernell — Foto: Foto: Divulgação

A atividade financeira e econômica está se afastando cada vez mais do sistema bancário regulado. Por isso, a próxima grande crise deve ter origem nos gestores de ativos e fundos de pensão, alerta a socióloga americana Kim Pernell, da Universidade do Texas. Pernell é autora de “Visions of Financial Order” (Visões da ordem financeira, Princeton University Press, 2024), que trata das respostas de reguladores financeiros à crise de 2008, comparando os Estados Unidos com o Canadá e a Espanha.

A socióloga examina a regulação por um ângulo incomum: o das influências culturais que determinam as decisões dos reguladores. A pesquisa que deu origem ao livro começou em 2012 como um projeto de doutorado na Universidade Harvard, que tentava explicar a facilidade com que bancos e outras instituições financeiras puderam adotar comportamentos arriscados nas décadas que antecederam a quebra do banco Lehman Brothers.

Aos poucos, porém, o problema foi mudando. Pernell se deu conta de que os reguladores de diferentes países tiveram atitudes muito distintas, apesar de já existir um consenso de precaução expresso no primeiro acordo de Basileia (1988). Ainda mais significativo, segundo a pesquisadora, foi observar que os argumentos que levaram a diferentes sistemas de regulação se repetiam a cada momento de crise e reforma.

Nos Estados Unidos, a dicotomia entre evitar o excesso de intervenção do Estado e, ao mesmo tempo, proteger os pequenos atores econômicos conduziu a resultados opostos: entre 1930 e 70, um mercado financeiro fortemente controlado e, dos anos 1980 até 2008, a desregulação quase completa. Na Espanha, a ênfase na soberania do Estado levou a uma trajetória quase inversa. O Canadá, onde o conceito de “direitos públicos” é dominante, desenvolveu um sistema próximo ao americano, mas as diferenças muito sutis de mentalidade ajudaram seus bancos a sobreviver melhor quando a crise chegou.

Pernell se refere a essas mentalidades nacionais como “princípios de ordem”, que têm raízes profundas: no caso americano, ela identifica debates semelhantes aos atuais já nas primeiras décadas de existência do país, no fim do século XVIII. Mesmo depois da crise, as mudanças de regulação continuaram seguindo as mesmas linhas históricas. Hoje, embora reconheça que a cultura é um molde difícil de quebrar, a socióloga acredita que é possível buscar formas de regulação mais criativas por meio de decisões baseadas em evidências.

Trechos da entrevista de Kim Pernell ao Valor:

Valor: No último parágrafo, lemos que a crescente complexidade do sistema financeiro global vai exigir criatividade dos reguladores, mencionando o caso da quebra do Silicon Valley Bank, no ano passado. Em que consiste essa complexidade?

Kim Pernell: A imprensa e os reguladores tiveram dificuldade em entender a falência do Silicon Valley Bank e outros bancos regionais. Não eram os megabancos da crise de 2008. Então, o argumento sobre “grande demais para falir” e o excesso de poder do governo levando a comportamentos arriscados não fez tanto sentido.

Valor: O caso do SVB foi considerado uma história de sucesso, pois a crise sistêmica foi evitada.

Pernell: Foi um sucesso, claro. Mas a questão é: por que isso aconteceu, nesse momento em que os bancos são rigidamente regulados? Esse caso indica que há pontos cegos no sistema regulatório. Olhamos demais para alguns pontos e negligenciamos outros. Esses bancos dependiam demais de fontes de financiamento voláteis. Muitos deles eram dependentes de depósitos feitos por meio de corretores, mas os investidores dos mercados de corretagem são muito sensíveis às mudanças nas condições econômicas. A questão não é o tamanho de um banco ou as barreiras que impõem disciplina aos bancos. É só a questão banal das fontes de financiamento. A que pressões sua combinação de financiamento te expõe? Só que não estamos analisando isso, porque estamos muito focados em saber se um banco é grande demais para falir ou se o governo desincentiva a disciplina de mercado.

Valor: Em que consiste a criatividade de que a sra. fala?

Pernell: Gostaria de ver os reguladores americanos discutindo mais as pressões para obter uma lucratividade extremamente alta. Essas pressões aumentam quando os mercados se tornam mais competitivos. Os investidores põem uma enorme pressão sobre os executivos do banco para obter retornos de curto prazo. Os reguladores bancários espanhóis reconheceram o papel importante que essas pressões, quando levadas ao extremo, podem desempenhar. Os líderes dos bancos se envolvem em estratégias que, em retrospectiva, não eram boas ideias. São encorajados a assumir riscos que, de outra forma, não assumiriam. Quando a realidade se impõe, eles descobrem que estão sobrecarregados. Por isso os reguladores espanhóis criaram, por exemplo, tipos de regulação anticíclica.

Pernell: No caso do provisionamento para perdas com empréstimos, os reguladores bancários espanhóis foram pioneiros. Os executivos dos bancos ficam muito animados quando as condições econômicas estão boas e dão empréstimos que não devem, então têm que arcar com as consequências quando as condições econômicas vão mal. Os reguladores decidiram tentar suavizar o ciclo, forçando os banqueiros a guardar mais reservas quando os tempos estão bons. Quando estão ruins e todo mundo está desesperado, os requisitos de reservas são reduzidos. Os ciclos de expansão e retração não vão embora, mas são suavizados. O Acordo de Basileia III foi uma tentativa de impor um buffer de capital anticíclico. Mas isso não vai funcionar se as preocupações culturais dos EUA se limitarem a evitar infrações nos processos de mercado ou combater grandes atores financeiros diversificados.

Valor: A sra. diz que o primeiro acordo de Basileia não conseguiu evitar a crise por permitir muita discricionariedade em cada país. Como ficamos com Basileia III?

Pernell: O problema com qualquer estrutura regulatória transnacional é que, para fazer com que todos assinem, é preciso ter disposições que não ofendam ninguém e não mudem drasticamente os hábitos de negócios. Com o buffer de capital, a ferramenta está disponível para reguladores em qualquer contexto nacional, o que não era o caso antes da introdução de Basileia III. Mas os reguladores ainda decidem quando e se vão ativá-la. O buffer foi introduzido em 2016, mas os reguladores bancários dos EUA nunca escolheram usá-lo. Não é que a mudança na estrutura regulatória internacional tenha sido irrelevante. Ela molda o campo da possibilidade e favorece inovações. Mas o decisivo é a interação entre as regras internacionais e a discricionariedade local.

Valor: Desde a crise, enormes empresas de gestão de ativos, com trilhões de dólares em carteira, passaram a dominar o mercado. Como isso afeta a regulação?

Pernell: Afeta enormemente. Hoje, o centro nervoso da finança não está no sistema bancário, mas nos fundos de gestão de portfólio e de investimento. São instituições que controlam nossas poupanças e aplicações, com um crescimento exponencial. Eles têm cada vez mais controle sobre ativos publicamente negociados, infraestrutura e recursos naturais. Há uma enorme massa de capital administrado por empresas de gestão de portfólio e fundos de pensão e não sabemos bem aonde isso pode levar a economia.

Valor: Onde está o perigo?

Pernell: Só as instituições que aceitam depósitos, como os bancos, estão sujeitas ao seguro de depósito, ao credor de última instância e outros elementos da rede de segurança. A regulamentação americana se concentrou nessas instituições, achando que, por causa do risco moral, elas são mais propensas a assumir os riscos que arruínam o resto da sociedade. Mas a atividade financeira está se movendo para fora do sistema bancário. O capital está se concentrando em atores financeiros sem conexão com os depósitos e a rede de segurança. Será que representam menos risco? Eu não acho. Hoje, a Securities and Exchange Commission [SEC, a comissão de valores mobiliários americana] tenta aumentar sua capacidade de supervisionar as atividades de fundos de hedge, de private equity, gestores de investimentos, gestores de ativos e outras empresas de gestão de portfólio. Mas os tribunais bloqueiam, porque as leis americanas não permitem. Estou preocupada que a próxima crise se materialize fora do sistema bancário regulamentado.

Valor: Algumas dessas gestoras são gigantescas, com trilhões de dólares em carteira. São elas que representam um risco para a economia?

Pernell: Representam, mas não estou tão concentrada nas grandes empresas de gestão de ativos só porque são grandes. Estou mais preocupada com o fato de que o capital, os recursos financeiros, a atividade econômica estão migrando da intermediação dos bancos e indo para esse setor de gestão de ativos. A regulamentação foi criada porque a sociedade decidiu que não queria tolerar que aqueles que controlam enormes fluxos de dinheiro assumissem riscos excessivos, afundando toda a economia com eles. Foram estabelecidas regras para governar o que as instituições financeiras têm permissão para fazer. Mas hoje o fluxo e a intermediação de dinheiro são controlados por instituições sujeitas apenas ao princípio do dever fiduciário e nada mais. Por que permitimos que apenas seu ethos profissional defina o que é aceitável ou não? Já tentamos isso e não funcionou muito bem.

Valor: O que muda quando olhamos para a regulação pelo prisma sociológico?

Pernell: No livro, eu pergunto como se desenvolvem os sistemas regulatórios, algo que não interessa aos economistas. Eles olham para o impacto das regulamentações, mas a questão da origem é social ou política, porque lida com as disputas entre formuladores de políticas e como eles tomam decisões. Quando tratamos de regulamentação financeira, em geral pensamos que as regras foram decididas como respostas a eventos no mercado, racionalmente. Só que muitos dos problemas que enfrentamos são semelhantes em todos os países, e os formuladores de políticas lidam com eles com ferramentas e técnicas muito diferentes. Há algo além da realidade econômica de que os bancos operam em um mercado global e se envolvem com atividades cada vez mais complexas.

Valor: Em geral, fala-se da possibilidade de captura dos reguladores pelo mercado.

Pernell: Sim, essa é a perspectiva dominante nos estudos da regulação, sobretudo na ciência política. Quando reguladores tomam decisões, não estão só olhando para o cenário econômico e tentando descobrir a melhor estratégia para controlar os problemas. Eles também são pessoas com motivações e podem ser tentados, ou pressionados, pelos setores que regulam. Os bancos são poderosos, têm muitos recursos. Os reguladores são atraídos pela possibilidade de trabalhar no setor privado e, com isso, fazem escolhas, conscientes ou não, que servem aos interesses do setor. Não estou dizendo que isso não seja verdade. Mas essa não é uma explicação satisfatória para as diferenças entre políticas regulatórias que observamos nos países.

Pernell: Precisamos ir além do foco no poder do setor regulado e pensar em motivações inatas, que levam as pessoas a ver o mundo de maneiras diferentes e se comportar de forma diferente. Os reguladores, mais do que capturados, são atores sociais, sujeitos a uma gama de influências sociais, além da realidade econômica e do poder das corporações. São pessoas, vivem em países, cresceram em sistemas escolares como o resto de nós. O que aprendem na experiência da vida cotidiana molda a maneira como veem as situações e as estratégias consideradas legítimas.

Valor: Em outro artigo, a sra. mostra que indicar um diretor de risco (CRO) não necessariamente reduz a exposição dos bancos. Por quê?

Pernell: Uma razão é que, ao tornar um indivíduo responsável pelo gerenciamento de risco, os outros agentes baixam a guarda. Então o gerente de mesa de negociação, por exemplo, fica mais confortável buscando estratégias arriscadas, sabendo que é supervisionado por alguém encarregado do risco. Além disso, os CROs emergiram em um momento em que os bancos tinham que mostrar aos acionistas que fazem de tudo para maximizar retornos. Nesse cenário, o diretor de risco tem que justificar a própria existência como alguém que contribui para melhorar o valor do acionista. Ele diz: minhas habilidades servem para maximizar os lucros para vocês. São os chamados “retornos otimizados pelo risco”. Ele deixa de ser o policial encarregado de controlar o risco.

Valor: Essa mentalidade de maximização do valor do acionista, independentemente de qualquer outro stakeholder, foi abalada pela crise?

Pernell: Muito pouco, apesar de tudo que se fala sobre isso. É que essa mentalidade se traduz em práticas concretas. O que as pessoas acreditam importa, faz diferença, não porque as crenças flutuem no ar, mas porque são concretizadas na forma de práticas reais. Isso é muito evidente no caso do valor para o acionista. Os CEOs podem dizer que se importam com ESG, por exemplo, ou com o valor das partes interessadas. E talvez se importem, de fato. Mas no fim das contas, a remuneração do CEO ainda está vinculada ao desempenho das ações no curto prazo? Qual o papel dos investidores na determinação da estratégia corporativa? A retórica do valor do acionista trouxe consigo reformas concretas de governança corporativa. É nisso que devemos prestar atenção. Como os modelos de governança influenciam as pessoas que tomam decisões?

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