Escândalos contábeis mostram que auditoria está em crise

LONDRES – Há dez anos, quando a crise financeira ganhava força, dois gigantes do mundo dos investimentos nos Estados Unidos, o Goldman Sachs e a seguradora American International Group (AIG), se viram enredados em uma intrincada disputa contábil com altas apostas em jogo.

O braço de produtos financeiros da AIG em Londres, que crescia a passos largos, havia subscrito seguros de bilhões de dólares, na forma de derivativos de crédito, contra uma montanha de créditos hipotecários agrupados pelo banco de investimento. Com a deterioração das condições de crédito no fim de 2007, o valor dessa apólice de seguros tornou-se crucial para a saúde financeira das duas empresas.

O banco queria contabilizar esse enorme ganho que estava tendo com sua posição de derivativos, baseado em uma estimativa probabilística sobre a inadimplência dos créditos que serviam de base para esses derivativos. Pelos cálculos do banco de investimento, a AIG devia US$ 5,1 bilhões em suas posições de swap por vencer, uma grande parte disso ao Goldman Sachs. O AIG, como era de se esperar, tinha um ponto de vista diferente. A seguradora estimava seu passivo em não mais de US$ 1,5 bilhão, soma que proveitosamente lhe permitia continuar a contabilizar lucros trimestrais.

Os dois lados tentaram conseguir a aquiescência de seus auditores para esses tratamentos contábeis. Por coincidência, nesse caso, isso significava a mesma firma: a PricewaterhouseCoopers (PwC). Apesar da lógica de ferro de que o ganho de um lado, em uma conta de soma zero, deveria espelhar uma perda equivalente do outro lado, a mesma firma permitiu essas abordagens diferentes – e mutualmente benéficas.

Foi apenas meses depois, com os mercados ainda congelados, que a PwC endureceu sua posição e obrigou a cliente seguradora a assumir uma baixa contábil considerável. Na ocasião, mesmo isso se mostrou atrozmente insuficiente. As posições de derivativos da AIG, no fim das contas, obrigaram a AIG a pagar relutantemente dezenas de bilhões de dólares em 2008 – uma quantia que pôde pagar apenas porque o governo dos EUA interveio para resgatá-la.

A palavra auditoria significa exame analítico. Bisbilhotar em busca de fatos era, outrora, a principal vocação dos auditores: certificar informações para garantir aos investidores que os números de uma empresa eram “justos e verdadeiros”. Na disputa da AIG com o Goldman Sachs, contudo, foi gritante ver como bem pouco era possível de ser verificado. Havia poucos preços de mercado confiáveis e, muito menos transações, para respaldar definições de valor essenciais. Foram contabilizados lucros e prejuízos ilusoriamente precisos, não com base em observações concretas, mas em cálculos matemáticos derivados de modelos de computador.

No que se refere à lógica dessas avaliações contraditórias, Charlie Munger, parceiro de investimentos de Buffett, falou em nome de muita gente quando observou em entrevista em 2009 que haviam “violado os princípios mais elementares do bom senso”.

“As contas sempre contiveram estimativas; pense [por exemplo] nas provisões que as empresas reservam contra perdas no futuro previsível”, diz Sharon Bowles, ex-presidente da Comissão de Assuntos Monetários e Econômicos do Parlamento Europeu. “Mas desancorar a auditoria de fatos verificáveis se tornou endêmico.”

No Reino Unido, nos últimos 30 anos, os responsáveis pelas normas contábeis desmantelaram progressivamente o sistema de contabilidade do “custo histórico” e o substituíram por um baseado na ideia de que o objetivo principal das contas eram apresentar informações “úteis aos usuários”. O processo permite aos executivos antecipar lucros previstos ou ganhos ainda não realizados e contabilizá-los como superávits no presente.

Voltando a tempos mais recentes, é isso que esteve por trás de uma série de escândalos contábeis envolvendo lucros superestimados, como o da rede de supermercados britânica Tesco e da empresa de software Quindell. Também teve relação com a insolvência do grupo de terceirização britânico Carillion, cuja revisão repentina de contratos em 2017 anulou lucros, com direitos a dividendos, dos seis anos anteriores. Nos EUA, o conglomerado General Electric está sob investigação pela forma como contabiliza seus contratos.

Esses eventos alimentaram preocupações sobre o mercado de auditoria. Também levantaram dúvidas se as chamadas “Quatro Grandes” firmas de contabilidade (KPMG, Deloitte, EY e PwC) seriam muito grandes para falir e excessivamente motivadas pelo lucro, além de demasiado aquiescentes aos desejos dos clientes. O Reino Unido iniciou uma investigação sobre a efetividade do Conselho de Contabilidade Financeira (FRC), seu órgão de supervisão do setor.

Isso, porém, talvez seja um esforço direcionado a analisar os sintomas e não a causa do problema, que pode estar nas próprias normas contábeis.

A auditoria moderna britânica nasceu de uma grande falência: o colapso em 1878 do City of Glasgow Bank. Abalados pela extinção dessa instituição de responsabilidade ilimitada, cujas perdas atingiram a classe média da cidade, mais bancos passaram a se tornar firmas de responsabilidade limitada. Tal prerrogativa, trouxe outras responsabilidades, entre as quais a necessidade de realizar auditorias independentes.

Seu propósito era garantir aos investidores que gestores mal-intencionados ou demasiado otimistas não abusassem do capital das empresas. “Em seu cerne, as auditorias são para proteger o capital e, portanto, assegurar um gerenciamento responsável do capital”, diz Natasha Landell-Mills, da gestora de ativos Sarasin & Partners.

Com base nisso, erigiu-se uma contabilidade que louvava a prudência. O princípio de que os ativos eram avaliados pelo que fosse mais baixo, o custo ou o valor realizável líquido (valor estimado pelo qual poderiam ser vendidos), não excluía da equação as estimativas. Mas elas entravam em cena apenas quando os valores caíam. Não era possível para os gestores conjurar ganhos e lucros não realizados e apresentá-los como fatos.

A ideia de que as contas devem ser primeiramente “úteis” nasce da mesma fonte que a hipótese dos chamados mercados eficientes. Na verdade, é um anexo dessa teoria atualmente um tanto desacreditada.

Desde os anos 60, acadêmicos como William Beaver, da Standford University, desenvolveram a ideia de que para os mercados canalizarem o capital de forma eficiente para as atividades mais produtivas, os balanços precisavam dar aos corretores de valores mobiliários uma compreensão mais clara do valor presente de uma empresa.

Isso significava abandonar noções como prudência e conservadorismo; em vez disso, a contabilidade precisava ser “neutra” e usar valores mais atualizados para os itens dos balanços patrimoniais.

Isso foi radical. A contabilidade do valor justo havia sido evitada com firmeza pela Securities and Exchange Commission (SEC, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) por ter contribuído para as perdas do “crash” de 1929. Incidentes mais contemporâneos, porém, haviam conferido mais respeitabilidade à hipótese. A decolagem da inflação nos anos 70 fez os balanços patrimoniais pelo custo histórico parecerem enganosos, fora de sintonia com o valor das propriedades, estimulando a venda de ativos. A crise da poupança e do crédito dos EUA nos anos 80 foi atribuída, em parte, ao fato dessas firmas exibirem livros com valores desatualizados.

A partir dos anos 90, o “valor justo” começou a suplantar o “custo histórico” nos balanços, primeiro nos EUA, e, depois – com o advento das normas contáveis dos Padrões Internacionais de Resultados Financeiros (IFRS), em 2005 – na União Europeia. Os ativos bancários que eram mantidos com o propósito de ser negociados começaram a ser reavaliados regularmente, com base nos valores de mercado. Os contratos passaram cada vez mais a ser avaliados como fluxos de receitas, estendendo-se, com descontos, continuamente no futuro.

Também foi a época em que a remuneração dos executivos-chefes, especialmente nos EUA, estava aumentando por meio do uso de incentivos relacionados ao mercado. Entre 1992 e 2014, a parte dos salários baseada em ações dada pelas firmas do índice S&P 500 passou de 25% a 60% da remuneração total, segundo a base de dados ExecuComp.

Não demorou muito para os chefes perceberem as possibilidades financeiras de sua capacidade de influenciar o valor justo. Entre 1995 e 1999, por exemplo, as ações da Enron tiveram desempenho abaixo do S&P 500. Em 2000, entretanto, quando as trapaças contábeis da empresa americana de energia começaram a entrar em jogo, suas ações superaram de longe o índice referencial. Nos dez meses anteriores a sua quebra, a empresa pagou aos executivos US$ 340 milhões.

“O problema da contabilidade do valor justo é que é muito difícil diferenciar entre a marcação a mercado [com base nos preços do mercado], a marcação a modelo [com base em modelos financeiros] e na chamada ‘marcação a mito’ [em que os valores da marcação a modelo fogem da realidade)”, diz um investidor que faz parte do conselho de administração de uma firma de auditoria.

Na teoria, o valor justo não deveria impossibilitar auditagens sólidas. Mas as tornam mais difíceis. O maior espaço de manobra que as normas mais frouxas dão a executivos sedentos por bonificações aumenta a pressão sobre os auditores.

Há, contudo, poucas evidências de auditores mudando para enfrentar esse aumento nas dificuldades. Vejamos, por exemplo, os ativos de valor intangível, um item contábil que mede a diferença entre o preço de fato pago por uma aquisição e o valor líquido dos ativos adquiridos.

Até a virada do século existia a convenção de que, quando uma empresa comprava a outra, os ativos intangíveis eram de fato um custo para a transação, que precisava ser amortizado – sofrendo anualmente uma redução no valor contábil contra os lucros do grupo. Deixar de fazer isso, enquanto também se contabiliza o lucro adicional obtido com os ativos comprados, foi uma forma de contabilidade duplicada, que inflou os benefícios de uma fusão. De acordo com o professor de administração e políticas públicas Karthik Ramanna, da Blavatnik School of Government, da Oxford University, “isso viola a premissa básica da contabilidade tradicional”.

Os responsáveis pelas normas, no entanto, encorajados por Wall Street, abrandaram as normas dos ativos intangíveis em 2000. Isso passou a poder ser contabilizado nos balanços de forma permanente. Apenas passou a ser contabilizada baixa se houvessem evidências de que os fluxos de caixa futuros do ativo básico haviam diminuído o suficiente para exigir a redução no valor.

Curiosamente, essas evidências se mostraram notavelmente difíceis de detectar, tendo em vista a natureza volátil do grau de sucesso da maioria das fusões. Desde 2007, os ativos intangíveis totais no balanço das empresas do S&P 500 decolaram, passando de US$ 1,8 trilhão para US$ 2,9 trilhões em 2016, sendo que grande parte disso foi usada para garantir a emissão de títulos de dívida.

Quando a Carillion quebrou em janeiro, o grupo havia reduzido apenas 134 milhões de libras esterlinas do valor de seus ativos intangíveis, de 1,5 bilhão de libras (US$ 1,96 bilhão), apesar de pelo menos uma grande aquisição ter incluído ativos líquidos negativos de quase 200 milhões de libras e ter ficado solvente apenas com o apoio explícito do grupo controlador.

Pode haver pouca evidência de que os auditores estão mais exigentes, mas eles reagiram de outras formas às dificuldades representadas pela contabilidade do valor justo: principalmente se aglutinando e buscando formas de limitar sua responsabilidade.

Das “Oito Grandes” existentes em 1987, o setor passou por uma consolidação até chegar às “Cinco Grandes” em 1998. Com o colapso da Arthur Andersen em 2002, o número encolheu para quatro. Essas firmas dominam inteiramente os mercados de auditoria de empresas de capital aberto no Reino Unido e nos EUA. Muitos observadores admitem que essa falta de opções torna o setor mais difícil de ser regulamentado. “Isso torna as Quatro Grandes demasiado grandes para falir”, diz Guy Jubb, professor honorário da University of Edinburgh e especialista em governança corporativa.

Em 2017, o quarteto teve receitas combinadas em torno a US$ 134 bilhões, empregando quase 945 mil pessoas, segundo a Statista. A escala torna as Quatro Grandes um alvo bem maior para processos de acionistas na Justiça, em especial nos EUA.

Para defender-se contra isso e reduzir o espaço para ações judiciais, as firmas de auditoria valeram-se seu poder de lobby para encolher cada vez mais a liberdade de ação e poder de julgamento envolvidos no trabalho que fazem. Daí, a explosão das chamadas regras das “caixinhas de colocar visto”, elaboradas para alcançar resultados mais mecânicos, “neutros. É um processo equivalente a uma furtiva “socialização ou coletivização dos riscos da auditoria”, segundo o professor Ramanna.

Nesse vácuo, entraram em cena executivos mais preocupados com os interesses próprios, funcionários que ganharam poder de influência cada vez maior na apresentação das contas. Basta ver a prática de contabilidade dos cartões de crédito de juro zero que os bancos britânicos lançaram na esperança de ganhar dinheiro quando acabasse o período de juro zero e os clientes começassem a pagar altas taxas.

Práticas contábeis “realistas” permitem que as empresas reconheçam antecipadamente a receita com base em suas estimativas sobre a continuidade dos cartões após o vencimento do período de juro zero. Quanto mais otimista o executivo fosse quanto à manutenção do cliente, maior o valor do ativo. Em vista dos incentivos existentes para os chefes, não é surpresa que o resultado tenha sido um inchaço dos cartões de juro zero, em meio a uma crescente preocupação do Banco da Inglaterra quanto à formação de uma bolha.

Observadores reconhecem o problema e receiam que as normas agora possam impedir os auditores de reprovar a prática. “Quando você fica cara a cara com os executivos e eles dizem ‘É assim que queremos apresentar e isso está tudo dentro das regras’, como é que você lida? Em última análise, é muito difícil argumentar contra isso”, diz o investidor do conselho da firma de auditoria.

Também há percepção de que as dominantes Quatro Grandes, que agora são conglomerados de serviços profissionais sedentos por lucros, não estão tão preocupadas com a qualidade da auditoria. “Elas têm sido capazes de ter melhor desempenho com trabalhos de baixa qualidade do que com os de alta”, diz Erik Gordon, professor da Ross School of Management, da University of Michigan. “É menos caro e os clientes, que na verdade são os executivos da empresa [cliente], e não os acionistas, parecem satisfeitos com auditorias que não contestem sua visão de como está sendo o desempenho deles.”

Algumas das maiores firmas de contabilidade reconhecem que a confiança em seu trabalho de auditoria desabou. “Há algumas razões legítimas para isso”, diz uma figura de alta hierarquia de uma das Quatro Grandes. “Se não houvesse nada [de errado], não estaríamos tendo este debate. Isso não estaria ganhando tantos centímetros de colunas [na imprensa] se, em sua essência, algo não estivesse funcionando bem.”

Em última análise, há tensões entre balanços que são prudentes e os que são “úteis aos usuários”. Apesar da dolorosa experiência de 2008, a profissão de contabilidade inclinou-se para o segundo sistema. Em 2010, em ensaio conceitual revolucionário, tanto o Conselho de Padrões de Contabilidade Financeira (Fasb), dos EUA, quanto o Conselho de Padrões de Contabilidade Internacional (Iasb, na sigla em inglês) deixaram de lado o termo “confiabilidade”, no caso, a necessidade de verificação factual, em favor da “representação fiel”, o que quer dizer pouco mais do que um “palpite”.

“Isso é uma indicação de como os responsáveis pelas normas, divorciados da contabilidade pública e bajulados pelos interesses especiais das empresas, podem construir sua própria realidade”, diz o professor Ramanna.

Isso abriu uma lacuna entre as normas contábeis e a lei empresarial britânica, segundo a qual as contas de uma empresa devem apresentar um quadro “verdadeiro e justo” de sua posição financeira e lucros.

Críticos do valor justo temem que os padrões contábeis tenham se afastado demasiado de sua exigência legal. Muitas das recentes mudanças ficaram escondidas, dentro da harmonização internacional ou como resultado da agenda do “útil para os usuários”. Landell-Mills teme que os investidores ainda não tenham absorvido quais serão as consequências para o interesse público.

“No extremo”, diz ela, “uma contabilidade de valor justo que trate reavaliações para cima como se fossem lucros legítimos e ignore perdas no futuro previsível pode facilitar esquemas de pirâmide, nos quais lucros cada vez mais ilusórios permitem aos executivos e acionistas atuais extrair dinheiro por meio de bonificações e dividendos. Não vai demorar muito antes que você quebre.” (Tradução de Sabino Ahumada)

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