Camargo Corrêa negocia superdelação

Outro fim do mundo

Depois da Odebrecht, a Camargo Corrêa negocia uma superdelação: quarenta executivos, incluindo controladores, revelarão o que sabem sobre as propinas pagas a mais de 200 políticos

Daniel Pereira – Veja

Em maio de 2010, o então presidente Lula desembarcou no Porto de Suape, em Pernambuco, para inaugurar o primeiro navio-petroleiro construído no Brasil depois de catorze anos. Dilma Rousseff, sua candidata ao Palácio do Planalto, também estava no palanque. Em ritmo de campanha, os dois foram filmados pelas lentes do marqueteiro João Santana, que usou as imagens na propaganda eleitoral para dizer que o governo do PT ressuscitara a indústria naval do país. Era uma balela. Em vez dos contornos grandiosos desenhados pelo marqueteiro, a história encerrava, na verdade, uma mentira e um crime. A mentira: o navio inaugurado por Lula nem sequer estava pronto e, se fosse lançado ao mar, afundaria como chumbo. O crime: para participar da construção desse e de outros nove navios, a Camargo Corrêa pagou propinas milionárias a políticos. Ao ser apresentada a esse enredo, a força-tarefa da Lava-Jato viu-se diante da possibilidade de mapear o departamento de propina da Camargo Corrêa, como está fazendo com o da Odebrecht. O fio dessa meada já começou a ser puxado. E o que vem por aí é outra delação do fim do mundo.

VEJA apurou que os advogados da Camargo Corrêa estão negociando com a Procuradoria-Geral da República uma segunda leva de delações de executivos da empresa. Agora, o número de colaboradores pode chegar a quarenta, incluindo acionistas da empresa. No cabo de guerra, comum em casos como esse, entre quem quer contar o mínimo necessário e quem quer escarafunchar o máximo possível, os procuradores estão ganhando. Apelidada de “recall da Camargo Corrêa”, a mais nova megadelação está sendo tocada tanto em Curitiba quanto em Brasília, o que significa que autoridades com prerrogativa de foro serão citadas.

Os advogados dizem que os novos delatores pretendem narrar como contas bancárias no exterior foram usadas para repassar propina a expoentes dos poderes Executivo e Legislativo. A Camargo Corrêa promete, inclusive, exumar o cadáver da Operação Castelo de Areia, que no fim da década passada assombrou integrantes de sete partidos, entre eles o atual presidente da República, Michel Temer. Se tudo caminhar como esperado, os investigadores avaliam que virá à luz mais um extenso rol de excelências agraciadas com propinas milionárias: estima-se em 200 o número de políticos e funcionários públicos alcançáveis pela delação.

A Castelo de Areia, cuja protagonista é a Camargo Corrêa, é um capítulo especial na historiografia da impunidade. Deflagrada em 2009, a operação desnudou uma engrenagem de corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro movimentada pela empreiteira. Ao cumprirem mandados de busca e apreensão, agentes federais descobriram planilhas e bilhetes manuscritos com nomes e apelidos de políticos associados a valores. Seria a relação de corruptos comprados pela empresa? Iniciou-se, então, uma apuração destinada a confirmar a suspeita. No meio do percurso, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a Castelo de Areia. O argumento: denúncias anônimas, justamente o ponto de partida da operação, não poderiam servir de base para a quebra de sigilo de dados. Assim, tudo o que estava vindo a público voltou a ficar enterrado. É essa exumação que está prestes a acontecer. “A Lava-Jato usará a Camargo Corrêa para ressuscitar a Castelo de Areia”, diz uma fonte envolvida nas negociações. A força-tarefa da Lava-Jato quer saber, inclusive, se a Camargo Corrêa pagou propina para conseguir a anulação no STJ.

Em 2014, quando a Lava-Jato ganhou as ruas, a Camargo Corrêa terminou o ano como a terceira maior construtora do país, com receita bruta de 4,9 bilhões de reais e 15 000 empregados. A Odebrecht (7,4 bilhões de receita e 107000 empregados) liderava o ranking, seguida pela Queiroz Galvão (5 bilhões de receita e 19000 empregados). Com o avanço das investigações sobre o petrolão, a Camargo, já em 2015, confessou crimes e firmou um acordo de leniência com o Ministério Público. Para preservar o direito de tocar obras, aceitou pagar 700 milhões de reais de indenização. Dois de seus principais executivos, Dalton Avancini e Eduardo Leite, também fecharam acordos de delação premiada nos quais narraram o repasse de propina em troca de contratos na Petrobras, na Eletrobras e na Eletronuclear. Entre os beneficiários da dinheirama estavam os onipresentes José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil de Lula, Renan Calheiros, presidente do Senado, e Romero Jucá, líder do governo Temer no Congresso.

Com o acordo de leniência e as delações de dois de seus executivos, a Camargo Corrêa deu como resolvida sua situação com a Justiça. Mas os investigadores foram, aos poucos, descobrindo que a empreiteira não contara nem a metade do que sabia. A delação premiada de Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, deu aos investigadores a senha da caixa-preta. Às autoridades, Machado relatou transações tenebrosas envolvendo a Camargo Corrêa que haviam sido omitidas pela empresa. Reacendeu, assim, a possibilidade de que seus diretores e até acionistas retornassem à mira da Lava-Jato. Foi exatamente para evitar esse problema que a empreiteira decidiu voltar à mesa de negociação com o Ministério Público — desta vez, numa espécie de delação institucional, nos moldes do que fizera a concorrente Odebrecht.

Entre as histórias comprometedoras narradas por Sérgio Machado, destaca-se o contrato de construção dos dez navios, incluindo aquele petroleiro inacabado inaugurado por Lula em 2010. Em parceria com a Queiroz Galvão, a Camargo Corrêa vencera a disputa por esse projeto, avaliado em 2,7 bilhões de reais, em 2007. Em seu acordo, Machado contou que as duas empresas concordaram em pagar 1% do valor em propina: 27 milhões de reais. Ao detalharem a liquidação da fatura, o ex-presidente da Transpetro e seu filho, Expedito Ponte Neto, também delator, disseram que a Camargo Corrêa usava uma conta secreta no paraíso fiscal de Andorra, na Europa, para pagar a propina — conta cuja existência não fora informada pela construtora às autoridades. Eles também afirmaram que foram orientados pela Camargo Corrêa a abrir uma conta no exterior para receber o dinheiro sujo. E assim foi feito. À força-tarefa, Expedito Ponte Neto disse que se reunia com Pietro Bianchi, o executivo da Camargo Corrêa que respondia pela conta em Andorra, para definir os valores dos repasses, que efetivamente foram depositados na conta aberta em nome da empresa Javary, controlada pela família Machado. Nas palavras do filho do ex-presidente da Transpetro, Bianchi era o “encarregado de operacionalizar a transferência das propinas para a conta no exterior”. Expedito Neto disse que Antônio Miguel Marques, ex-presidente do conselho de administração da Camargo Corrêa, combinou com ele o uso de uma terceira empresa, que faria o papel de intermediária, para o acerto da propina.

São favas contadas que Bianchi, Marques e outros executivos que estavam na empresa na época da Castelo de Areia estarão entre os novos delatores. Mas os procuradores querem fisgar mais peixes, sobretudo os mais graúdos. No radar da força-tarefa estão, entre outros, Luiz Nascimento, um dos principais acionistas da construtora (ele é casado com uma das herdeiras do império deixado pelo empreiteiro Sebastião Camargo, morto em 1994), e Vitor Hallack, outro ex-presidente do conselho de administração. Segundo Sérgio Machado, os dois se envolveram pessoalmente nas tratativas sobre a distribuição de propina — e, ao lado de executivos da Queiroz Galvão, cobraram o aumento do valor dos contratos dos navios sob a alegação de que era preciso compensar os prejuízos registrados na execução do projeto. “Chegaram a pressionar o depoente com o argumento de que só a Transpetro não aceitava isso e que na Petrobras o expediente era corriqueiro”, declarou Machado, referindo-se a Hallack e Nascimento. “(Disseram) que isso poderia trazer um aumento substantivo das vantagens ilícitas e favorecer os políticos aliados do depoente.”

Parte das negociações sobre o “recall da Camargo” ocorre em Brasília porque expoentes do atual governo estão entre os prováveis alvos da nova megadelação. O presidente Michel Temer foi citado 21 vezes nas planilhas apreendidas pela Castelo de Areia. Ao todo, recebeu 345 000 dólares, segundo os documentos. Já na Lava-Jato, os investigadores apreenderam outra planilha na qual o nome “Themer”, assim, com H, aparece associado a pagamentos de 40 000 dólares, supostamente relacionados a obras tocadas pela Camargo Corrêa. Temer já foi citado por dois delatores da Odebrecht. Um deles, Cláudio Melo Filho, ex-vice-presidente de relações institucionais, disse que o peemedebista pediu 10 milhões de reais diretamente a Marcelo Odebrecht em 2014.

Ao tirar antigos esqueletos do armário, a Lava-Jato também pode complicar a vida de pelo menos dois ministros. O atual titular da Educação, Mendonça Filho, foi citado na Castelo de Areia como beneficiário de 100 000 reais, quando era candidato à prefeitura do Recife, em 2008. A Polícia Federal disse que o dinheiro foi repassado por meio de uma empresa pertencente à Camargo Corrêa, a Cavo Serviços e Meio Ambiente. Mendonça admite ter recebido doações da construtor e ainda corrige o valor: diz que recebeu 300 000 reais da empreiteira, tudo regular. Transações pretéritas também batem à porta de Gilberto Kassab, ministro das Comunicações. Segundo a Castelo de Areia, um ex-auxiliar do ministro recebeu 1 milhão de reais para facilitar a liberação de um terreno. A transação ocorreu quando Kassab era prefeito de São Paulo. A superdelação trará novos problemas para Antonio Palocci, interlocutor preferencial da empreiteira na era petista. Procurada, a Camargo respondeu que não pode comentar negociações em curso. Temer, por meio de sua assessoria, negou ter recebido qualquer tipo de recurso irregular da Camargo Corrêa e afirma que nem sequer tinha relações com a empreiteira, tanto que, em um dos documentos apreendidos, seu nome saiu escrito de modo incorreto. Os ministros Mendonça Filho e Gilberto Kassab negam que tenham recebido propina da construtora. Renan Calheiros e Romero Jucá, que já são formalmente investigados pela Lava-Jato, também dizem que são inocentes. O terremoto da Odebrecht ainda nem atingiu o pináculo da escala Richter e Brasília já começa a se preparar para tremer de novo.