RELEMBRE – A caixa-preta da PETROS e os problemas ainda insolúveis

Em maio/1999 , Carlos Flory ocupoa o cargo de presidente da Petros, um dos fundos de pensão mais ricos e problemáticos do Brasil. Com 27 anos de experiência na Siemens, 15 dos quais gerenciando o fundo de pensão da multinacional alemã, Flory foi pessoalmente convidado por Henri Reichstul, presidente da Petrobras, para assumir o cargo. Sua missão: pôr fim ao descalabro administrativo e financeiro que marcou gestões anteriores da Petros. Além disso, ele tem que transformar essa caixa-preta – como ainda é visto no mercado – num fundo de pensão ágil, eficaz e transparente.
Não é uma tarefa fácil. Com 5,5 bilhões de reais de patrimônio, o quinto maior fundo de pensão do Brasil apresentava um quadro de inépcia gerencial típica de instituições chapas-brancas. Com o agravante de que, além de manter uma ligação promíscua com o governo, tinha uma relação igualmente descuidada com a iniciativa privada.Por anos a fio, a Petros funcionou como uma espécie de tia rica sempre disposta a sacar o talão de cheques à menor necessidade do sobrinho carente. Precisou de recursos para financiar um empreendimento imobiliário qualquer? Lá estava a Petros. Precisou aumentar o preço de uma companhia estatal prestes a ser privatizada? Lá comparecia o fundo de novo. “O critério de escolha dos investimentos muitas vezes levou mais em consideração os interesses da nação do que a rentabilidade financeira da aplicação”, diz Flory.

O resultado é que o portfólio de investimentos da Petros virou um catálogo de maus negócios. “Aqui tem mico que não acaba mais”, afirma um assessor do presidente. Eis alguns exemplos:
Em 1997, a Petros, com outros fundos de pensão, injetou cerca de 700 milhões de dólares na Paranapanema. O objetivo era salvar a mineradora da falência. Não adiantou. O buraco era fundo demais. Em 1998, a Paranapanema deu um prejuízo de quase 123 milhões de reais. Dessa empresa, a Petros carrega 3,6% das ações ordinárias, num total de 9,8 milhões de reais, mais 105 milhões em debêntures.
Em 1998, a rentabilidade da carteira de imóveis da Petros foi de cerca de 6%. Isso equivale a menos da metade do rendimento da caderneta de poupança, que foi de 14% no mesmo período. Há anos a Petros administra prédios que não rendem um centavo. Como o edifício Serrador, no Rio de Janeiro. A construção, situada no corredor cultural da cidade, não pode ter sua fachada alterada e, atualmente, não tem utilidade comercial. Na verdade, só dá prejuízo com gastos de manutenção e impostos. “A única coisa que fazemos com o Serrador é emprestá-lo como locação de filmes”, diz Flory. O valor declarado em balanço dos imóveis da Petros é contestável. Em 1998, seis dos 20 edifícios que compõem sua carteira de imóveis foram reavaliados para baixo, gerando um prejuízo de 13 milhões de reais. Um desses imóveis, o World Trade Center, em São Paulo, tinha um valor contábil de 32 milhões de reais, mas acabou sendo reavaliado para 25 milhões de reais.
Além dos edifícios micados, a Petros assinou uma série de contratos esdrúxulos com empresas incorporadoras de shopping centers. De 1990 para cá, o fundo investiu mais de 300 milhões de reais em nove projetos. Entre eles, estão os shoppings de Fortaleza, Maceió e Campinas da rede Iguatemi, de propriedade do empresário Carlos Jereissati, o Market Place, em São Paulo, e o Shopping Del Rey, em Belo Horizonte. Na maioria dos empreendimentos, as condições de contrato eram pouco atrativas: a Petros entrava com o dinheiro para construção e, em troca, só recebia o valor do aluguel das lojas. Nada de luvas, nada de participação nos lucros. Ou seja, a Petros assumia todo o risco do empreendimento.
A carteira de ações tampouco se salva. Dela faziam parte aplicações em fundos com estratégias opostas. Ou seja, se uma aplicação desse lucro, a outra fatalmente daria prejuízo. Uma vez contabilizadas as taxas de administração, investimento e impostos, o total rendido pelas aplicações era negativo. Em parte, por conta dessa estrutura, a Petros acumulou perdas gigantescas. Em 1998, o prejuízo com ações chegou a 450 milhões de reais. A rentabilidade nominal – negativa, de 38,6% – foi pior do que a média do mercado. No mesmo período, o Ibovespa caiu 33,47%. Além disso, pairam suspeitas sobre a terceirização de parte da carteira de ações com o banco Opportunity. Em 1996, o Opportunity recebeu da Petros 526 milhões de reais em ações, com uma meta de rentabilidade de IGPM mais 6%. Se a carteira rendesse mais do que isso, o banco ganharia uma comissão de 15% sobre a diferença.

A questão é que IGPM mais 6% é uma meta considerada muito baixa pelos analistas. “Alcançar essa rentabilidade é ridiculamente fácil”, segundo Eduarda La Rocque, gerente de análise de risco do BBM. Maurício Gentil, sócio do Opportunity, afirma que o contrato previa uma transferência de tecnologia do banco para a Petros. Por isso, diz ele, o preço era tão salgado.
Com tantos problemas, o resultado é que o patrimônio da Petros simplesmente não cresceu o que deveria. Seu rendimento ficou muito aquém do CDI. Se o fundo tivesse deixado o seu dinheiro aplicado em renda fixa, teria crescido mais. Internamente, estão sendo conduzidas investigações para determinar a responsabilidade pela seqüência de maus negócios, mas, segundo Flory, é quase impossível comprovar que houve falcatruas, irregularidades ou favorecimentos nos negócios da Petros. “Não havia nenhum bobo aqui”, diz um assessor do presidente.

Para reverter a situação, a Petros está passando por uma série de mudanças. A primeira providência tomada pelo novo presidente quando assumiu o cargo foi alardear no mercado que, a partir de agora, a torneira da Petros fechou. “As pessoas precisam entender que o endereço para dinheiro grátis fica do outro lado da Avenida Chile (referência ao vizinho BNDES, cuja sede se situa em frente do prédio da Petrobras, na Avenida Chile, no Centro do Rio de Janeiro)”, diz Flory. “Lá é que tem subsídio governamental, não numa fundação que tem de pagar aos seus velhinhos.”
Desde maio, todas as transações em bolsa estão suspensas. Ninguém compra, ninguém vende nada. O objetivo é sanear a carteira de ações do fundo. No quesito imóveis, a ordem é descobrir o real valor dos edifícios da Petros. Para isso, o fundo contratou duas empresas privadas para reavaliar os edifícios espalhados pelo Brasil. O que não for rentável e não tiver chance de recuperação será vendido, assumindo-se o prejuízo. A área de pessoal também está sob escrutínio. A consultoria PriceWaterhouseCoopers está fazendo uma análise do funcionamento de cada departamento, dos cargos aos processos, para saber quem é quem – e quem faz o quê – na Petros.
Uma vez rearrumada a estrutura interna, Flory tem de atacar outro flanco vulnerável do fundo: seus problemas atuariais. Como se não bastasse o péssimo estado dos investimentos, a Petros, filha dos tempos da ditadura, traz problemas estruturais de berço. Dos quase 90000 associados, 49000 estão aposentados pelo sistema de benefício definido. Segundo esse sistema, o valor da aposentadoria é fixo e refere-se ao salário pago no último cargo ocupado pelo beneficiário. Assim, alguém que alcance a posição de diretor receberá aposentadoria equivalente ao salário do cargo, mesmo que só o tenha ocupado por um mês.

Quem paga a diferença? A Petrobras. Como a Petrobras é uma empresa pública, paga a sociedade. A proposta que Flory espera implementar sugere que os planos de benefício definido sejam substituídos por planos de contribuição definida, em que o empregado paga sempre o mesmo valor nas parcelas, mas a aposentadoria pode variar de acordo com a rentabilidade dos investimentos. Dessa forma, o risco sai das mãos da empresa e cai nas mãos do aposentado. Enquanto não convence seus beneficiados a mudar de plano, a Petros tenta atrair clientes de outras empresas para equilibrar sua carteira. Hoje o fundo já administra o dinheiro de aposentadoria de dez empresas privadas, como a Petroquímica União, a Copene, a Copesul, a Ultrafértil e a filial brasileira da argentina YPF. No futuro, a intenção é tornar a Petros uma empresa multipatrocinada, capaz de competir com os fundos de pensão privados na hora de conquistar adeptos. “Precisamos convencer os contribuintes de que a Petros é uma boa opção de fundo de pensão”, afirma Flory.

Outro desafio da nova gestão é resolver o eterno problema da dívida que a Petrobras tem com a Petros desde que esta foi fundada, em 1970. Nesse ano, o então presidente da Petrobras, Ernesto Geisel, garantiu aposentadoria para todos os funcionários da casa, inclusive os que nunca contribuíram para qualquer entidade de previdência. O resultado foi uma dívida de 5,5 bilhões de dólares, que veio se arrastando de lá para cá. Em 1995, a Petros chegou a sofrer intervenção da Petrobras por conta das brigas pelo dinheiro devido. Agora Flory e Reichstul estão em adiantadas conversas sobre a melhor forma de resolver a querela. Em outubro, pela primeira vez a Petrobras assumiu o passivo com a Petros em seu balanço, reconhecendo oficialmente a dívida e o rombo em suas contas. A forma de pagamento está em discussão.
Mas por que, depois de 29 anos de má gestão, o fundo de pensão da estatal parece ter acordado para atacar seus problemas, tornar-se competitivo e melhorar sua imagem? Se você respondeu patriotismo, deve ter ficado esperando Papai Noel aparecer no mês passado. A verdadeira motivação é puramente capitalista. Explica-se: com a quebra do monopólio de petróleo, a Petrobras está sendo obrigada a tornar-se uma empresa competitiva. E ela não conseguirá competitividade se carregar um fundo de pensão deficitário e inadimplente nas costas. “Como a Petrobras está prestes a abrir o capital no exterior, a falta de transparência em relação à Petros, neste momento, seria fatal”, diz um analista de um grande banco estrangeiro. “Se um dia vier a ser privatizada, com um fundo de pensão organizado, a Petrobras será capaz de atrair um número maior de interessados.” Se, de fato, Flory conseguirá transformar a Petros nessa fundação eficiente que imagina é uma questão que só o tempo irá responder. Por enquanto, só se pode afirmar que, um dia, já esteve pior.
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