Miriam Leitão: o começo foi assim
Eu precisava gravar as passagens da matéria. Sabia o que iria dizer, estava bem posicionada em um ângulo que permitia as imagens que a gente queria. Só havia um problema: na hora de falar, eu comecei a chorar. Pedi desculpas à equipe e corri para o banheiro.
– É o fim! Acabou! Acabou! – contava para mim mesma, enquanto olhava no espelho o estrago do choro no rosto.
Retoquei a maquiagem, reforcei o batom, respirei fundo e fui gravar.
– Acabou a ditadura militar no Brasil. O candidato Tancredo Neves venceu a eleição no Colégio Eleitoral…
Era 15 de janeiro de 1985 e, no Congresso, os jornalistas não conseguiam esconder a alegria. Alguns riam, outros choravam como eu. Amigos se abraçavam. Tancredo tinha vencido por larga margem o candidato do regime Paulo Maluf.
Eu havia acordado bem cedo e fui com a equipe filmar o amanhecer. O céu sempre lindo de Brasília tinha nuvens demais. Eu conhecia os janeiros na capital e sabia que era temporada de chuvas, mas devia ter desconfiado do rápido presságio que passou por mim avisando que, de novo, nada seria fácil. Gravei um texto de abertura da reportagem antes que os pingos começassem a cair. Falei sobre o alvorecer de um tempo novo. As contas dos aliados de Tancredo eram altamente favoráveis. Mesmo assim, Maluf entrou no Congresso fazendo ares de vencedor. Perdeu feio.
Eu já havia feito entrevistas conflituosas com ele na Abril Vídeo, produtora de programas de TV da Editora Abril, onde eu trabalhava. Em uma delas, ele ficou 45 segundos em silêncio e os editores decidiram pôr o silêncio no ar, uma decisão atrevida em televisão. Como Maluf tinha a mania de dar respostas diferentes das perguntas, eu continuei refazendo a mesma pergunta, até que ele se cansou, calou e encarou a câmera. O rosto foi mudando da raiva para a perplexidade, desmontando a máscara diante da nossa insistência. O cinegrafista não desviou o equipamento, nem eu, o microfone. “O silêncio de Maluf” foi repassado várias vezes, a pedido dos telespectadores, na emissora para a qual a Abril Vídeo produzia conteúdo. Estava satisfeita naquele começo de um novo tempo, porque havia conseguido, também, entrevista exclusiva com Tancredo, na qual ele falou do futuro do que ele chamaria de Nova República.
O momento em que se proclamou o resultado – 480 votos em Tancredo e 180 votos para Maluf – a alegria explodiu no plenário, no Congresso, na manifestação popular fora do Congresso, na Cinelândia, na Sé. No Brasil. O PT fechou questão contra o voto em Tancredo, três dissidentes votaram em Tancredo e foram expulsos do Partido: Ayrton Soares, José Eudes e Bete Mendes. Eles tinham oito deputados, perderam mais de um terço da bancada.
Uma chuva forte despencou sobre Brasília e as cenas, que ficaram históricas, do povo se abrigando embaixo de uma bandeira gigante e dançando na Praça dos Três Poderes eram mais lindas vistas ali, na hora, naquele dia da travessia. Era o fim do tempo tenebroso que havia consumido a maior parte da minha vida até então. Sob a ditadura eu me transformara de menina em mulher, em mãe, em profissional. Várias vezes pensei que aquele terror não teria fim. Vinte e um anos é um tempo longo demais para esperar quando se é jovem. Em 1974, eu não tinha esperança no futuro. Tinha passado já por dores demais. Quem a restabeleceu foi Ulysses com seu discurso de anticandidato.
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Ulysses Guimarães e Miriam: o resgate da esperança
Ele disse que, “posto no alto da gávea” de um metafórico navio, sonhava em poder dizer ao povo brasileiro: “Alvíssaras meu capitão, terra à vista. A terra da liberdade”. Como demorara a chegar o porto. Enfim, terra à vista. O grito de alegria, tanto tempo prisioneiro, saiu em canto, dança, choro, risos, abraços. Era difícil ser só jornalista, naquele momento. Reencontrei um amigo que ficara preso no mesmo batalhão que eu e ele me disse, indiferente:
– Nada vai mudar.
– O que aconteceu com você? Com sua esperança?
Não entendi o velho amigo. Era tempo de acreditar. A chuva parecia ser o clima perfeito para lavar as almas, limpar a vida. Houve um momento em que vi o arco-íris, a aliança, um novo tempo. Como não chorar? Várias vezes fui ao banheiro, retocar a maquiagem.
Agora era só esperar a posse e a saída do último general que estava lá na Granja do Torto, com suas pernas arqueadas, sua farda e quepe, perdido em seu labirinto.
Voltei a Brasília para a posse. Não houve posse.
Em São Paulo eu morava, com meus filhos, Vladimir e Matheus, na mesma rua do hospital onde Tancredo ficou internado. Aquela espera, os boletins, a mesma frase “preservadas as funções vitais”. A gente fazia jornalismo misturado ao povo que ia para lá todos os dias nos perguntar: tem notícia? Ele melhorou?
O tempo não passava. A respiração presa. Tristeza, aflição e espera.
Um dia, tive folga do plantão na porta do hospital e um amigo me convenceu a ir ao cinema. Fui sem vontade, para pensar em outra coisa. Ao entrar em casa, vi meus filhos em pé na sala, com rostos sérios.
– O que aconteceu?
Meus meninos. Tão pequenos e já acompanhando notícia, tendo noção do que aquela informação significava para mim, para a jornalista, para o Brasil.
Eles em abraçaram e falaram em conjunto:
– Tancredo morreu.
E eu tinha ido ver o filme: “O exterminador do futuro”.
Chorei de novo, no ombro dos meninos. Arrumei as malas e fui para Brasília. O cortejo com o corpo desceu a rua na qual eu morava, a caminho do aeroporto. Os meninos viram. Vladimir fez uma linda redação para o colégio sobre o presidente morto passando em frente à nossa casa.
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Tandredo e Miriam abraçados: o choro dos jornalistas com a morte do presidente
Em Brasília vi tudo como se fosse um pesadelo. Tancredo subindo a rampa no caixão é imagem de não se esquecer jamais. Haveria outros dias, novos sustos, aflições econômicas e políticas, mas foi assim que começou a Nova República. Nada é fácil no Brasil.
Trinta nos depois daquele 15 de janeiro, estava fazendo comentários para contar como foi aquele tempo. Quando falava na CBN, lembrando como foi valiosa aquela conquista, eu imaginei um jovem me olhando. Ele, que nada viu, gostaria de entender essa época de denúncias, de erros do governo, de corrupção. Eu disse que só a democracia tem os instrumentos para corrigir esses problemas. Só com mais democracia é que venceremos. Quis ser convincente e por isso enfatizei: “Nada é pior do que a ditadura. Nada é pior. Nada é pior do que ser jovem em uma ditadura”. A garganta travou. Respirei e continuei contando o quanto de avanço social, político e econômico conseguimos. Nada foi fácil, nada jamais será fácil. Mas esse é o tempo da democracia. E nele temos avançado.